Quando falamos em doação de órgãos, a relação entre receptor e doador é um assunto que mexe com o imaginário das pessoas, afinal não são poucas as campanhas que utilizam histórias de encontros ricas em emoções como forma de incentivo. Ao que se refere à doação em vida, não há muito o que se falar, pela lei, parentes até o quarto grau e cônjuges podem ser doadores, e não parentes podem com autorização judicial. Assim, a relação tanto de receptor quanto de doador já é preestabelecida.
E em se tratando de doador falecido? Será que é possível o encontro entre os familiares do doador com a pessoa que recebeu o órgão deste familiar? Esse é um assunto complexo e polêmico, que pela falta de informação e orientação de quais são as regras que o guiam, pode-se abrir espaço para más interpretações.
Como transplantada, constantemente as pessoas me questionam se tenho curiosidade em conhecer a família daquele que me doou o rim, ou se gostaria de poder agradecê-la pessoalmente. Respondo que não se trata de querer, pois o nosso sistema brasileiro de transplante protege a identidade de ambas as partes envolvidas. Na doação após a morte, nem o doador pode escolher quem será o receptor, e nem o receptor pode escolher o seu doador. O receptor será sempre o próximo da lista única de espera de cada órgão. E este anonimato segue após a doação. No momento da ligação anterior à cirurgia, as únicas informações a respeito do meu possível doador foram a idade, o sexo, e o motivo da morte, os outros dados permaneceram em sigilo.
Apesar de não haver uma norma específica na Lei de Transplantes (Lei 9.434/97) que proíba a exposição das partes, como advogada entendo que esta pauta deve se guiar pelo Código de Ética Médica, que preza pelo sigilo do paciente. Além disso, a privacidade de um indivíduo é princípio constitucional amplamente protegido pelo direito público, constante da Constituição Federal e regulamentado pelo Código Penal. Assim, a conduta adequada aos médicos é a de não revelar a identidade de doadores ou receptores de transplantes de órgãos e tecidos tanto para familiares como para o público em geral, e sua violação pode resultar em infração ética sujeita a penalização.
Na falta de uma regulamentação que visasse diminuir os inconvenientes desse encontro, em outubro do ano passado foi publicado o Decreto n. 9.175 que regulamenta a Lei de Transplantes no Brasil, e traz expressamente em seu artigo 52 que “na hipótese de doação post mortem, será resguardada a identidade dos receptores em relação à família dos doadores”. Fica, portanto, taxativamente proibido o fornecimento de informação de qualquer paciente pela equipe médica, incluindo doadores e receptores de órgãos.
Acredito que estes dispositivos estão acertados em garantir o sigilo das partes, afinal, o que norteia a doação é a máxima do “fazer o bem sem olhar a quem”. Para quem recebeu, já há o benefício de ter sua vida salva e sua saúde reestabelecida com o órgão novo, e para a família que doou, saber que os órgãos foram utilizados e pessoas foram beneficiadas já é um conforto. E isto não depende das pessoas se conhecerem.
Devemos estar cientes que muitos desses vídeos de encontros que circulam na mídia, na maioria das vezes, se passam em outros países, que possuem regras e sistemas completamente diferentes do Brasil. Muitas vezes, no entanto, os próprios meios daqui também podem fazer confusão, e abordar o tema de forma equivocada, o que pode vir a reforçar alguns tabus e inseguranças. Não é raro, ainda, noticiar casos bastante famosos de transplantes, que envolvam doadores conhecidos do público em geral, e assim não fica difícil de se identificar quem são as pessoas envolvidas. Porém, caso ocorra de a mídia divulgar quem são os respectivos receptores, não deixará de estar cometendo um ato ilícito.
A regra, portanto, é que todas as pessoas se sintam seguras. Ninguém é obrigado a conhecer ninguém se esse não for o seu desejo. Cada pessoa lida com esse momento de um jeito, e isso deve ser respeitado. O nosso sistema de transplantes, dessa forma, se preocupa em gerar a maior segurança possível para todos os envolvidos no processo: doadores, receptores, família, e também aqueles que aguardam na fila.
Mesmo que a gente não conheça os responsáveis por essa nova chance de vida que tivemos, nós transplantados vivemos nossa gratidão todos os dias, tentando devolver ao mundo esse bem que nos foi feito! Agradecendo pela vida e por esse órgão que recebemos com tanto amor!
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