Sérgio Brasil
- Dr, qual a diferença entre morte encefálica e coma?
Eu vou começar então hoje falando sobre coma e morte encefálica. A diferença entre essas situações. O coma é uma situação, ele reflete exatamente uma redução do nível de consciência em que a pessoa começa a ter prejudicada a sua interação com o meio externo. Então isso pode ser a causa de um acidente, um traumatismo craniano que faça a pessoa perder a consciência imediatamente. Isso pode ser induzido por medicamentos que deprimem a função do encéfalo, do cérebro, do sistema nervoso central.
E a morte encefálica já é uma situação bem diferente. A morte encefálica o paciente está em coma, mas nem todo coma é morte encefálica.
Então o paciente em morte encefálica, ele tem uma privação total de interação com o meio externo. Agora, para que a morte encefálica seja decretada isso é um processo muito complexo que exige a participação de diversos profissionais e várias etapas são cumpridas.
- Dr, por que o processo brasileiro de constatação de morte cerebral é um dos mais seguros do mundo?
Esse diagnóstico de protocolo de morte encefálica do Brasil é um dos mais rigorosos do mundo. Eu conheço muitos protocolos de muitos países e eu fico muito satisfeito pela forma como o Brasil considera e como ele trata a morte encefálica porque a prioridade da determinação de morte encefálica no Brasil é segurança diagnóstica. É não errar. É um diagnóstico que não pode contemplar erro. Se o protocolo inteiro está concluído e a morte encefálica é decretada, a gente não tem dúvidas sobre isso, até porque no final é obrigatório associar um exame gráfico que mostra que não tem fluxo de sangue no cérebro ou atividade elétrica no cérebro ou metabolismo.
- Como é realizado o diagnóstico de morte cerebral?
A pessoa com morte encefálica, primeiro de tudo, ela tem que ter uma lesão no cérebro bem documentada, isso normalmente é feito por uma tomografia que mostra que houve realmente uma lesão grave no cérebro.
Primeiro passo é esse. O médico tem que saber a causa do coma, o porquê que aquela paciente não interage. Precisa ser retirada qualquer medicação ou qualquer medida terapêutica que possa suprimir a consciência, então o paciente tem que estar aquecido, o paciente tem que estar com uma pressão arterial adequada, o paciente não pode estar usando anestésicos.
Se essas situações estiverem acontecendo primeiro você estabiliza, retira esses medicamentos e aí aguarda de acordo com o remédio que está em uso o tempo necessário para que este remédio seja liberado da circulação e aí você consiga verificar se o paciente realmente tem resposta, se ele começa a interagir ou se ele não tem nenhuma resposta. E aí então são avaliadas as respostas neurológicas que são reflexos, a gente chama de reflexos porque existe um estímulo e uma resposta que elas permanecem, as pessoas mantêm esses reflexos independentemente se elas estiverem num coma induzido ou não.
Já em morte encefálica ela perde esses reflexos. Mas esses reflexos indicam para o médico que a possibilidade da morte encefálica é muito plausível. Então documentou o coma, retirou os fatores de confusão, começaram as provas neurológicas – os testes dos reflexos que são vários. Feito tudo isso, um outro médico que não pode ser repetido pelo mesmo médico que iniciou a avaliação, um outro médico repete todos esses testes neurológicos. Além desses dois testes de resposta neurológica é feito o teste que chama de apneia, ou seja, é retirado o tubo, a ventilação mecânica, o tubo permanece, mas o ventilador mecânico é afastado e é esperado um prazo no mínimo de 10 minutos para se observar se o doente começa a fazer esforço respiratório.
Não é possível ao ser humano querer – ah eu quero morrer porque eu quero parar de respirar – isso é impossível. A gente tem um comando que pelo acúmulo de gás carbônico no nosso sangue existe uma ativação automática do centro cerebral que comanda a respiração. Então se a gente retira o ventilador mecânico e aquela pessoa tem o cérebro viável, é inevitável que ela vai fazer esforço respiratório. Ela vai começar a brigar ali e fazer o esforço então é feito este teste de apneia. E não havendo respostas, não havendo movimentos respiratórios também passa nesse teste. Se há movimento respiratório então o teste de morte encefálica é abortado e todo o tratamento é reiniciado. Por último é realizado um teste chamado teste complementar, um exame gráfico.
- Dr, e como se mantém os órgãos em funcionamento mesmo o paciente em morte encefálica?
Esse diagnóstico é realizado cumprindo certos pré-requisitos. Então no transcurso de um atendimento… Primeiro, porque a morte encefálica existe?
Há muito tempo atrás quando surgiram os primeiros ventiladores mecânicos que foram instrumentos revolucionários na terapia intensiva, as pessoas em estado grave elas tinham capacidade de serem ventiladas mecanicamente e elas estando em coma não conseguiram respirar por si próprias agora então elas recebiam um tubo na boca e um pulmão de aço, um pulmão mecânico como uma forma que ar seja empurrado para dentro do pulmão. Então é uma ventilação mecânica a uma pressão que é distribuída para dentro do pulmão. Então numa fase de inspiração e a máquina produz também a expiração.
E no transcurso de atendimento desses doentes graves muitas vezes por mais que tudo que se faça, de todas as medidas e cada vez a Medicina avança mais, se faz todas as terapias, mas mesmo assim muitas vezes nós perdemos para a doença porque são doentes graves e muitos sem um prognóstico sem uma chance de salvação. Quando a doença evolui para que o cérebro tenha perdido de forma irreversível a sua ação, a sua atividade, a pessoa vai continuar tendo todos os seus órgãos para baixo do pescoço funcionando porque aquele pulmão mecânico que empurra o ar, ele persiste, ele mantém a oxigenação dos tecidos e dos órgãos.
Também há uma medicaçãozinha que é colocada na veia das pessoas e essa medicação ela contribui para que o coração continue bombeando sangue. Então ele continua com bombeamento e continua com a oxigenação. Sendo assim o sangue continua perfundindo em todos os órgãos menos no cérebro que sofreu uma agressão severa e irreversível, então por isso que a gente vê um paciente em morte encefálica e o corpo dele é quentinho, muitas vezes ele ainda tem movimentos espontâneos, movimentos induzidos por um simples toque da roupa no corpo, movimentos pelo toque por qualquer tipo de manipulação no corpo pode haver um arco reflexo, isso é chamado de reflexo de Lázaro, pela história bíblica de Lázaro que ressuscitou da morte.
Mas o que temos ali no reflexo de Lázaro é uma ativação medular, o estímulo entra pela pele e ele é transferido pela nossa espinha, pela nossa medula e há uma resposta motora de uma retirada ou de um movimento e isso não é mediado pelo cérebro, isso é um arco reflexo espinhal. A pessoa em morte encefálica pode manter movimentos mesmo não tendo comando central no encéfalo.
- Dr, é possível uma pessoa com morte cerebral voltar a viver?
Se é possível uma pessoa com inatividade cerebral voltar a viver? Não é. O diagnóstico de morte encefálica é decretado exatamente porque são feitas muitas avaliações e provas porque exatamente tudo isso é consequência de uma lesão cerebral severa, muito grave, irreversível. Então é uma condição irreversível.
Primeiro aconteceu uma condição, uma doença que prejudicou demais o funcionamento do cérebro. Esses pacientes têm doenças graves, muitas vezes já direto no cérebro, os acidentes, os sangramentos, os AVCs, mas muitas vezes as condições sistêmicas também afetam.
Então infecções graves e problemas como hepatite fulminante, doenças como a insuficiência respiratória aguda grave são condições que não são primariamente no cérebro, mas que são graves também então todos os distúrbios provocados por elas afetam o cérebro e então por muitas vezes por mais que o médico tenha acertado em todas as condutas, aquele paciente não respondeu bem, não foi possível conduzir a doença dele de forma satisfatória e o cérebro então perdeu a atividade de forma irreversível.
Isso porque o protocolo de morte encefálica se propõe a constatar a morte encefálica e esse diagnóstico sendo concluído, realmente ele não permite o erro, então não tem volta atrás.
*Sérgio Brasil, é médico em São Paulo e acredita que a informação é a melhor arma que nós temos no combate à enorme fila de transplantes, de pacientes em necessidade de um transplante de órgãos. Neurocirurgião especialista em Neurossonologia, Cuidados neurocríticos e Termologia. Tem Doutorado e pós-doutorado em neurociência.